Revolutions on Granite

Concluído curtos meses antes da invasão das tropas russas na Ucrânia, o documentário Revolutions on Granite reforça a universalidade da experiência humana que é ser skater. Centrado em torno da icónica Maidan Nezalezhnosti (Praça da Independência) o documentário demonstra, de forma pouco subtil, a ligação vital que o skate tem com o conceito de democracia.

A realidade vivida durante a Era Soviética é caracterizada no documentário pela supressão do pensamento critico, o bloqueio ao acesso de informação exterior, a propaganda passada como representativa de realidade, e sobretudo uma grande ‘falta de escolha’.

Ou seja, políticas orquestradas por um regime que submete o seu povo a lavagens cerebrais constantes, enquanto condena os seus cidadãos a uma existência reduzida a sobrevivência: Aqueles preocupados com a sua próxima refeição e a sobrevivência dos seus filhos, privados de informação e educação critica acerca de possíveis alternativas, dificilmente estarão munidos das ferramentas intelectuais e práticas necessárias para despoletar mudança.

A juventude, em particular, estava subjugada aquilo que era uma predestinação de ser o defensor de um império insustentável, sabendo montar uma AK-47 e morrer por uma pátria que lhe foi imposta, muito antes de saber o que é um skate.

Nos anos 80 quando a União Soviética começou a demonstrar os primeiros sinais de rotura, o skate finalmente conseguiu chegar á Ucrânia, numa onda de abertura de informação que trouxe consigo um choque cultural que rompeu a ilusão de que a vida era apenas trabalhar, procriar e morrer (de preferência pela pátria).

Para a comunidade local de Kiev, o skate representou algo muito simples: Liberdade.

A interação com a arquitetura urbana libertava o individuo da opressão de cidades inertes, convidando uma interação profunda com o ambiente envolvente; ao invés de caminhos condicionados que apenas levam os trabalhadores à fábrica, ou as praças que apenas servem o propósito de enaltecer símbolos de um estado opressivo.

Maidan posicionou-se então como o berço do skate em Kiev, ficando conhecida como o Love Park da Ucrânia, onde uma comunidade se começou lentamente a desenvolver. Em 1990, ocorre a Revolução no Granito, despoletadas por uma greve de fome por parte de estudantes universitários de Kiev, em protesto a eleições que favoreciam a influência Soviete no parlamento, resultando numa substituição do governo.

Nesta nova realidade, Maidan teve um papel central no crescimento da comunidade de skate local, transformando-se num centro cultural informal, onde também congregavam breakdancers, rappers, djs, músicos. Com o passar do tempo Maidan tornou-se no sitio central para o skate, resultando num aumento de praticantes.

Eventualmente alguns skaters estangeiros começaram a visitar Kiev, trazendo material e novos conhecimentos; uma tendência que se inverteu quando os ucranianos começaram a usufruir de novas liberdades para viajar e conhecer novos países.

Nos anos 90 deu-se também a reconstrução de Maidan, descaracterizando completamente a praça, como spot de skate e como ponto cultural da cidade. Essa renovação forçou a comunidade do skate a explorar a cidade ainda mais, descobrindo novas oportunidades e narrativas para Kiev. O skate ucraniano começou a ter um ‘boom’ no que toca ao nível e número de praticantes, assim como tours internacionais que rapidamente afirmaram o lugar inquestionável do país no mundo do skate.

Preocupados com um retrocesso à ‘Idade Média’, os ucranianos voltaram a ocupar Maidan em 2013, no seguimento de o governo ter sinalizado a sua preferência em estreitar laços com a Rússia, e distanciar-se da União Europeia. Desta vez os protestantes encontraram uma violenta resposta que resultou em cadáveres estendidos nos mesmos spots onde outrora havia sorrisos e manobras.

A Revolução da Dignidade, que ceifou inúmeras vidas que ousaram recusar o avanço de um regime opressivo, redefiniu novamente Maidan. As pedras do pavimento que haviam sido partidas e utilizadas como armas de autodefesa invocam imagens chocantes de pessoas assassinadas ou brutalmente espancadas. A Morte deixou a sua marca permanente num espaço associado ao começo da Vida do skate, e não só.

Durante o documentário, filmado antes da invasão, a Rússia é caracterizada como uma presença sufocante, que se recusa a reconhecer a soberania, autonomia e liberdade da Ucrânia. Fica também clarificado, como se tem comprovado inquestionavelmente, o quão resiliente o povo ucraniano é, tendo sido testado repetitivamente, refém da ilusão imperialista de Putin que prefere uma Ucrânia obliterada que livre.

Política à parte, o skate depende de sociedades abertas e livres de modo a atingir o seu potencial máximo. No caso da Ucrânia, pode-se observar um padrão em que as conquistas sociopolíticas que resultaram numa maior liberdade e influxo de informação acompanharam um consequente desenvolvimento do skate, suas comunidades e respetiva cultura.

Outra coisa que se torna evidente é a universalidade da linguagem de afetos comunicada no documentário. A experiência partilhada daquilo que significa ‘ser skater’ transcende quaisquer barreiras, conseguindo comunicar e empatizar com toda uma comunidade global, com base nas experiências partilhadas e lições adquiridas.

Assim como a guerra na Ucrânia é uma afronta direta a quaisquer noções básicas de Direitos Humanos, o retrocesso político e social que a mesma ameaça trazer consigo é antitético a tudo aquilo que o skate representa. Se a queda da União Soviética não tivesse ocorrido, o skate nunca teria tido espaço para plantar as suas raízes na Ucrânia, e décadas de progresso, cultura, amizade e felicidade nunca teriam tido lugar em Maidan, apenas miséria, ignorância, fome e sangue.

Assim como a comunidade do skate global tem algo a aprender com os testemunhos apresentados no documentário, também o Mundo tem bastante a aplaudir e admirar no que toca à perseverança, coragem e coração demonstrados pela população ucraniana.

Passamos por tempos em que se torna incrementalmente difícil identificar a nossa humanidade comum, e que através dos pioneiros de Maidan somos relembrados que essa mesma humanidade conjunta (também) pode ser reencontrada em cima de um skate.

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Viriato Villas-Boas

Observing & Commenting.● MSc Comparative Politics ■ London School of Economics and Political Science《》 B.A. Journalism & Media ■ Birkbeck, University of London