Rendimento Básico Incondicional: A Resposta para uma Economia de Quarentena?
Nos dias que correm somos constantemente bombardeados com notícias desagradáveis, preocupantes ou até mesmo assustadoras. Dessas notícias, a economia é sem dúvida um dos temas mais psicologicamente desgastantes. O peso da incerteza, a falta de apoios imediatos, e a passividade na face do colapso daquilo que é um dos pilares da nossa existência sociopolítica, evoca consigo uma sinfonia que anuncia a chegada dos cavaleiros do apocalipse.
Mas não tem de o ser, e estas reações hiperbólicas são sinais de um processo que já estava em curso, mas que foi acelerado vertiginosamente, com repercussões catastróficas ampliadas por essa mesma velocidade.
A revolução tecnológica que tanto caracterizou a última década, com repercussões cada vez mais inevitáveis para o mercado de trabalho, foi toda ela um sinal gigante que não deveria ter sido ignorado. Mas, como com a maioria dos proverbiais elefantes em quartos, pouco ou nada se fez para reconhecer o que aí vinha.
Ganhar Balanço
O desaparecimento de empregos, a redundância de certas ocupações e a falência de alguns negócios não são certamente temas estranhos a quem tenha prestado atenção ao Mundo desde, pelo menos, a viragem do século.
Neste contexto, as novas tecnologias, a invenção e re-invenção de novos sectores, e a constante sombra da inevitável automatização do mercado de trabalho fazem parte de uma realidade inevitável: numa população mundial em constante crescimento, poderão não haver empregos para todos.
Mesmo que nos foquemos meramente na perspetiva da automatização, a lógica é aparente. Os trabalhos manuais de natureza repetitiva serão, mais tarde ou mais cedo, substituídos por máquinas capazes de desempenhar tarefas de forma mais rápida, barata e eficaz que qualquer mão humana. Um conceito que pode ser observado muito facilmente num supermercado que tenha caixas automáticas.
Os resultados de um processo que era de certa forma inevitável, apesar de gradual, foram acelerados indescritivelmente pela nova pandemia do covid-19. Com a acrescida gravidade que só pode ser associada a uma crise económica sem precedentes.
Observando um padrão de desaparecimento de postos de trabalho, de desemprego sistémico, e a possibilidade de que muitos não voltarão a integrar o mercado de trabalho num futuro próximo (se de todo), apresenta-se então o mesmo problema proposto pela automatização, menos as máquinas e o tempo transicional.
Novos e radicais desafios evocam sempre a necessidade de ideias ou soluções à altura. Mas, antes de pensar em soluções, é importante perceber porque não podemos regressar à normalidade do prè-covid-19.
O Segredo é que Não Havia Segredo
A crise atual revelou mais que a fragilidade do presente sistema laboral, expondo a mão oculta de um mágico que afinal não tinha truques, apenas distrações. Num sistema que cada vez mais avançava para uma desregulamentação do tipo de serviços prestados, com uma economia cada vez mais baseada em tarefas semi-formalizadas e com pouca segurança ou prosperidade, o colapso seria inevitável.
Dita a lógica que nada pode expandir infinitamente, com a exceção do Universo em si (e mesmo essa teoria ainda não foi indisputavelmente comprovada). Ora, com isso em mente, vivemos inseridos num sistema económico que por natureza necessita de perpetuar e inflacionar a procura de bens de modo a dar resposta à produção dos mesmos. O raciocínio de que a procura é o fator que motiva o fabrico de produtos foi completamente invertido, criando indústrias inteiras com o propósito de encorajar o consumo de coisas produzidas antes de serem requeridas.
Noutras palavras, vivemos num sistema que não está apenas dependente da mais simples forma de circulação de capital (a troca de dinheiro por bens), mas sim de um constante aumento desse consumo, ad infinitum.
Outro fator importante é a acumulação de capital sem limites. Os ultra-ricos, — aqueles que têm mais dinheiro que alguma vez poderão gastar — são um fenómeno relevante pois demonstram que o dinheiro não se desloca tão circularmente como anteriormente pensado. A lógica de que o dinheiro quando inserido na sociedade através de consumismo desregulamentado passa por mãos diversas e beneficia a saúde económica de um país ou território não é tão linear como se pensou em tempos.
Dando um exemplo híper-simplificado e meramente anedótico: Se uma pessoa encomenda um produto da plataforma de vendas online Amazon, realmente o dinheiro gasto é redistribuído por várias entidades: o governo através de impostos, o vendedor do produto, os distribuidores (se forem externos à plataforma), e ultimamente à Amazon em si. Todas essas entidades ao longo da cadeia podem certamente reinserir esse dinheiro na economia — o governo providencia serviços públicos e emprega cidadãos, o vendedor investe em mais produtos, o serviço de entregas continua a ter capital para pagar os ordenados, etc…. E todos os que estão nesta linha (funcionários do Estado, o motorista da entrega, o vendedor do produto, etc.) irão então gastar o dinheiro em outros bens ou serviços de forma consequente.
Mas neste caminho existe um ponto de equilíbrio que é ultrapassado: quando o dinheiro chega, por exemplo, ao CEO da Amazon, que não tem como gastá-lo. Ou seja, quando o mesmo não consegue consumir mais rápido do que o que tem, quando não há necessidade de contratar mais pessoas ou criar postos de trabalho, quando não existe uma necessidade acrescida de serviços, etc. É um patamar quase inimaginável para nós, comuns mortais, mas ele existe. E quando o dinheiro chega a esse patamar ele não volta a entrar na economia, fica estagnado. E é aí que a lógica do consumo para sustentar crescimento começa a falhar, pois nunca ninguém prevê a possibilidade de um ser humano ter mais dinheiro do que pode gastar ou investir.
Toda essa problemática sendo ainda mais agravada pelas vastas quantias depositadas em offshores, que funcionam quase como buracos negros monetários. Uma vez que quando o dinheiro entra ninguém sabe para onde vai, de onde veio, nem quem o depositou.
Juntamos esses pontos e ficamos então com uma economia que precisa de cada vez menos trabalhadores, com necessidades laborais ocasionais e sem segurança de futuro (por exemplo, o trabalho com base em aplicações, como a Uber), e sustentada por uma classe que têm dinheiro suficiente para consumir, mas não tanto ao ponto de ficar parado.
Rendimento Básico Incondicional
O conceito de Rendimento Básico Incondicional (RBI) invoca fortes e variadas respostas. E quer se odeie ou se ame o RBI, a verdade é que enquanto o mesmo não for posto em prática em grande escala não poderá ser descartado nem ignorado com qualquer credibilidade. Aliás, por norma, a resposta ao conceito revela mais acerca da pessoa que o julga do que a medida em si.
Então, o que é o RBI?
De uma forma muito simplificada, é um pagamento mensal feito a todos os cidadãos
de um país de modo a cobrir as despesas indispensável à existência humana. Sendo a quantia em causa calculada com base no custo médio de vida do país em questão.
O pagamento é providenciado pelo Estado, substituindo assim outros programas semelhantes como o subsídio de desemprego, ou o rendimento de inserção social.
O RBI, como o nome sugere, é atribuído independentemente da condição social ou laboral do cidadão. Isto significa que toda a máquina burocrática necessária para fiscalizar as condições de cada caso individual se torna obsoleta, reduzindo assim o peso no Estado — Se todos recebem o mesmo pagamento, a necessidade de monitorizar a pessoa em questão desaparece.
O propósito básico do RBI é simplesmente garantir um equilíbrio em que todos os cidadãos possuam dinheiro suficiente para se sustentarem caso não tenham trabalho, mas que simultaneamente não seja uma quantia tão vasta que lhes permita viver para além dos seus meios e que estagne ambição.
O RBI no Contexto da Automatização e a Nova Economia
Como explicado acima, a economia progride no sentido de ter cada vez menos empregos estáveis, menos postos de trabalho em geral e uma concentração desproporcional de capital nas diferentes estratosferas sociais.
A ironia desta situação torna-se evidente quando concluímos que o sistema económico que resulta em menos empregabilidade e circulação de capital, é também o mesmo sistema que depende intrinsecamente de uma taxa elevada de pessoas empregadas de modo a facilitarem o movimento contínuo de cada vez mais elevadas quantias de dinheiro. De certa forma o sistema acaba por ser autodestrutivo, visto que quanto mais cresce (o seu propósito original) menos sustentável se torna.
A contribuição que o Rendimento Básico Incondicional pode fazer neste contexto é devolver alguma vitalidade à economia, ao inverter o fluxo de capital de cima-baixo para baixo-cima. Ou seja, em vez de exclusivamente fornecer recursos monetários ou políticos a entidades empregadoras (que os poderão, ou não, utilizar para redistribuir riqueza), alguns desses recursos são redirecionados diretamente para os sujeitos que adquirem os produtos de ditas empresas.
Noutras palavras, e de uma forma muitíssimo simplificada:
A lógica corrente é que se as grandes empresas forem apoiadas, essas entidades terão maior margem de negócio, o que fomenta a sua respetiva atividade, resultando numa maior necessidade de mão de obra, o que leva a um acrescido número de cidadãos com dinheiro para adquirir produtos de outras indústrias. Este ciclo sendo perpetuado na maior longevidade possível.
Em tempos de crise, e com o desenvolvimento de novas tecnologias e tendências de indústria, esse caminho nem sempre é percorrido, e os incentivos acabam por aumentar as capacidades internas da estrutura empresarial sem se manifestar necessariamente em novos postos de trabalho.
Por exemplo, uma entidade patronal pode simplesmente exigir que os colaboradores presentes trabalhem horas extra no contexto de uma crise, ou utilizar os incentivos fiscais e monetários para adquirir novas tecnologias que tornem obsoletos alguns dos presentes trabalhadores.
A lógica do RBI simplesmente inverte toda a viagem que o dinheiro faz do topo da pirâmide, resultando diretamente num cidadão com um poder de compra mínimo, de modo contribuir pelo menos para o continuamento da economia essencial.
No contexto da automatização, da emergência de novas indústrias e formas de trabalhar, o RBI asseguraria que na face de cada vez menos empregos, o esforço financeiro de providenciar uma segurança social a todos os cidadãos fosse mais proporcionalmente divido. Pois, numa sociedade em que cada vez menos trabalham com estabilidade financeira para fazer descontos relevantes, a carga fiscal no futuro será elevada de mais para ser sustentada apenas por essa mesma classe.
O RBI no Contexto do Covid-19
Num Mundo em que uma proporção inconcebível da economia se encontra paralisada por tempo indefinido, o conceito de Rendimento Básico Incondicional faz mais sentido que nunca.
As repercussões das medidas de combate à propagação do covid-19 podem ser interpretadas como o equivalente a uma crise económica à escala mundial no contexto de uma revolução tecnológico-industrial, mas multiplicadas por um número incalculável de vezes e a acontecer a uma velocidade supersónica.
O desaparecimento de indústrias inteiras, o colapso de empresas, o aumento do desemprego, e a estagnação da rotatividade de capital, que estavam a acontecer progressivamente, foram aceleradas bem para além do que qualquer um de nós poderia ter previsto, sobrando apenas os resultados catastróficos que se tornam mais evidentes a cada dia que passa.
Num contexto em que os cidadãos perdem as opções de como gastar o seu dinheiro — seja pela incerteza do futuro, a perda de rendimentos, ou a simples constrição física de o fazer -, priorizar o encaminhamento de capital e medidas de assistência financeira às entidades corporativas aparenta ser algo fútil a médio/longo prazo, apesar de que bem-intencionado.
Sim, ajudar as empresas a reter os meios para pagar ordenados, manter contratações e honrar os seus compromissos aparenta ser uma boa ideia imediata. Mas, se as pessoas não têm como gastar esse dinheiro em bens e serviços proporcionados por essa mesma empresa, então será apenas uma questão de tempo até que a mesma precise de mais ajuda para continuar a manter uma existência essencialmente não produtiva.
Se o RBI for instaurando durante a época urgente do covid-19, então todos os cidadãos (incluindo donos de empresas) ficam na posse do meio mais básico para a sua sobrevivência, e também para o suporte da economia. A medida pode aliviar o sofrimento e humilhação que resultam da privação económica, enquanto ao mesmo tempo garante que a economia não colapsa por completo por falta de dinheiro em circulação.
Infelizmente, o covid-19 não criou a crise económica que se avizinha, com consequências graves e imprevisíveis, se assim fosse a tão desejada vacina curaria também os males financeiros. A pandemia apenas expôs as fraquezas mais inerentes de um sistema que já caminhava para um colapso relativamente previsível.
Outras Possíveis Consequências do RBI
Este artigo já é extenso o suficiente, e entrar em pormenores exaustivos acerca das consequências da implementação de um Rendimento Básico Incondicional seria abusar do meu ‘tempo de antena’.
Consequentemente deixarei apenas uns pontos para posterior reflexão.
-Educação: Com a garantia básica de subsistência, o cidadão tem a possibilidade de estudar ou adquirir novas aptidões. Este ponto é especialmente relevante para quem que tenha perdido o seu trabalho para a automatização ou novas tecnologias.
-Demografia: O RBI proporcionaria uma estabilidade previsível a casais jovens que pretendam começar uma família.
-Desertificação: A segurança proporcionada pelo RBI significaria que mais pessoas se sentiriam confiantes em sair dos grandes focos urbanos.
-ONG’s: No que toca ao sector da solidariedade social, o RBI ajudaria a reduzir os custos de contratação, permitindo uma expansão dos seus quadros tanto quantitativamente como qualitativamente.
-Equidade: Os problemas estruturais que afetam minorias são por vezes barreiras que os obrigam a submeter-se a situações problemáticas por necessidade de sustento básico. O RBI seria uma rede de segurança contra os que se encontram subjugados à pressão económica dos seus agressores.
-Estagnação económica: A posse de uma quantia básica de dinheiro, que necessita ser gasto em bens essenciais, asseguraria que a economia nunca abrandaria ao ponto de parar.
-Coesão Social: Eliminando o fator ‘desespero’ da vida de muitos cidadãos, o RBI poderá contribuir para o decréscimo da criminalidade a que o mesmo obriga.
-Dignidade Laboral: O RBI equipa o trabalhador com uma ferramenta essencial na negociação das condições de trabalho: autonomia. Numa entrevista de emprego, o prospetivo trabalhador pode recusar uma proposta que o mesmo considere injusta.
-Desburocratização: Ao desmantelar todo o sistema que fiscaliza e calcula os benefícios, o Estado simplifica todo o processo de Proteção e Segurança Social, minimizando custos e aumentando a sua eficiência.
-Empreendedorismo e Cultura: O RBI garante a subsistência, mas não mata a ambição. Todas as coisas, materiais ou não, que custem dinheiro continuarão a existir, e será necessário bem mais que o RBI para as adquirir. No entanto, ter tempo e espaço para pensar criativamente, pesquisar, e planear, é essencial tanto para o desenvolvimento de novas empresas ou indústrias, assim como para a criação de artefactos culturais (música, pintura, escultura, teatro, literatura, etc.).
Posto de outra forma, o RBI retira a cenoura da vara e mete-la nas mãos de todos, de modo a que ninguém tenha que passar pela indignidade de dar dentadas no ar.