Os Portugueses Podem Não Ser Racistas … mas Portugal É !

Viriato Villas-Boas
5 min readApr 3, 2019

Recentemente, foi anunciada a abertura de processos disciplinares a dois agentes da PSP que estiveram envolvidos em agressões a moradores do Bairro da Jamaica. Eventos que forçosamente abriram as portas para a discussão das realidades raciais em Portugal.

Tal caso teve um interesse especial para a minha pessoa. Sendo emigrante no Reino Unido, especialmente durante um momento tão volátil na história deste país, tenho ao longo dos anos adquirido certas sensibilidades, conhecimentos e perspetivas. Lições e aprendizagens essas, que não poderiam ter sido assimilados caso tivesse permanecido em Portugal.

Eu, como individuo, passei os meus anos formativos fazendo parte da maioria estatística e étnica de um país. Como tal nunca tive que pensar profundamente acerca de assuntos que existiam para além da minha capacidade de compreensão pessoal. Tal mudou radicalmente aquando confrontado com a realidade de que a minha perceção era apenas uma ilusão, dependente da condicionante geográfica e cultural de Portugal. Noutras palavras, em Portugal nunca tive que aprender (de uma forma significante e prática) o que é o racismo/xenofobia, enquanto no Reino Unido passei a ser alvo desses mesmos males, como escrevi noutro artigo.

E quando se aprende a nadar atirado ao rio os instintos tornam-se mais apurados, pois passam de meros conceitos a reflexos.

A Fantasia

‘Mas Portugal não é um país racista…’, ouvi eu milhentas vezes. E também o disse e pensei, em tempos–especialmente quando via documentários ou noticias sobre países como os Estados Unidos.

Mas a verdade é que, mesmo que o modus operandi seja diferente, o resultado final é o mesmo. Adicionalmente, eu acredito mesmo (até ser provado contrário), que a maioria da população Portuguesa não seja racista.

Consequentemente, eu não estou a escrever acerca dos Portugueses, mas sim de Portugal.

Para muitos, o Bairro da Jamaica é a exceção que confirma a regra da ausência de discriminação racial em Portugal. Mas a verdade é que o Bairro em questão simplesmente demonstra a capacidade que o Sistema tem para esconder o que não deve ser visto, as ditas verdades inconvenientes. O facto de tamanho abuso dos direitos básicos humanos existir em solo Português, constituído por uma massa populacional que contradiz diretamente o status quo étnico nacional (os ‘brancos’ como minoria), diz mais acerca do nosso país do que aquilo que queremos admitir.

Temos que ter consciência que o racismo não ganha apenas expressão por entre os Mários Machados deste mundo. Esse cancro social não se materializa apenas nos insultos de ódio gritados por trogloditas nas ruas. O racismo existe também no que não se vê, mas que se sabe lá estar… E a impunidade política, por parte dos que sempre souberam, mas não quiseram saber da existência do Bairro da Jamaica, é prova de que Portugal é racista. Em retrospetiva cronológica e monetária, o custo de devolver a dignidade mínima às gerações que passaram pelo Bairro, são apenas ‘trocos’.

A negligencia em si é uma agressão, pois não fazer nada em certas situações é pior que fazer mal.

A Cegueira

Em toda a minha vida, eu nunca tinha ouvido falar do Bairro da Jamaica. Talvez por não ter sido criado em Lisboa, ou por pertencer a uma certa estratosfera étnico-social na qual não existe contexto para o assunto vir ao de cima, ou mesmo porque os que me rodeavam também desconheciam… Mas a verdade é que a surpresa com que as notícias me apanharam, é certamente demonstrativa de algo mais.

Eu digo que Portugal é racista, pois o ‘Sistema’ é racista. O ‘Sistema’, aquela coisa amorfa, que não tem alma nem dono, e que é constituído por tanta gente e tantas gerações que acaba por não ser ninguém… mas é esse mesmo Sistema que define as regras da nossa existência em terras Lusas. Esse é o conjunto de processos culturais e governamentais que resultam na minha ignorância do que se passa no meu país, e que dão ‘carta verde’ a forças policiais para agredir idosos e mulheres.

O Sistema a que me refiro é o mesmo que me vendou os olhos (a mim, e a tantos outros) para a existência do Bairro em questão. E foi essa mesma cegueira involuntária que permitiu a que os agentes da PSP tratassem seres humanos ‘abaixo de cão’, pois ninguém estaria lá para ver.

Relembro a antiga pergunta filosófica: ‘Se uma árvore cair na floresta, e não estiver ninguém lá para ouvir, ela fez barulho?’. Tomo então a liberdade de adaptar a pergunta ao o assunto em questão: ‘Se uma família for espancada no Bairro da Jamaica pela PSP, e não estiver lá ninguém para ouvir, será que as vítimas têm Direitos Humanos?’.

O Diagnóstico

Correndo o risco de ser mal interpretado, como é normal com assuntos sensíveis, aproveito esta última secção para esclarecer a raison d’être deste artigo. E de modo a ser breve, farei uso de uma analogia.

Quando vamos ao médico, porque razão seja, não há nada mais preocupante que ouvir: ‘Não sei o que se passa consigo’. Preocupação essa que aumenta em direta proporção com a gravidade dos sintomas. Situação que só poderia ser agravada se o médico mais tarde admitir saber o que se passa connosco, tendo omitido essa informação de modo a não ferir as suscetibilidades do paciente — ‘Ah, pois, eu sabia que você tinha escorbuto. Mas é uma coisa tão inconveniente que eu não queria estar a agitar ou envergonhá-lo, por isso decidi não dizer nada.’

A questão do racismo em Portugal é um pouco assim. Vemos os males, sabemos dos sintomas, e, entretanto, existe uma escolha consciente em não reconhecer a doença. Tal poderá ser porque, como disse no início, a maioria dos Portugueses não são integralmente racistas, criando um consenso ilusório de que o fenómeno não existe de todo. Ou, talvez porque se confunda a discussão de um facto com uma admissão de culpa.

Sejam qual for a razão, é importante ter em mente que quando encaramos o problema do racismo a nível nacional, o mesmo não é um julgamento em tribunal, mas sim uma consulta num gabinete médico. Os diagnósticos são feitos de modo a erradicar doenças, não julgar pacientes, pois se não sabemos os nomes das coisas não as podemos encarar.

Considerando que o racismo é uma doença social, todos nós deveríamos vestir as nossas batas brancas proverbiais de modo a descobrir a cura que tanto precisamos.

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Viriato Villas-Boas
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Written by Viriato Villas-Boas

Observing & Commenting.● MSc Comparative Politics ■ London School of Economics and Political Science《》 B.A. Journalism & Media ■ Birkbeck, University of London

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