Chega de (A)Ventura(S)!

Viriato Villas-Boas
9 min readFeb 4, 2020

Pela segunda vez consecutiva a Assembleia da República Portuguesa (AR) abriu as portas a novas forças políticas, refletindo uma nova tendência de pluralidade parlamentar — Um fenómeno a que chamei de Paradoxo Partidário noutro artigo.

Apesar de que não me compete avançar com uma moralização do assunto como um todo, creio ser pertinente tentar desmistificar a única força política (das que estão representadas na Assembleia) que reconheço como corrosiva para a nossa Democracia e valores sociais: o Chega!.

Populismo? Sim, mas não vamos por aí.

Para todos efeitos o Partido Chega! deve a sua existência e impacto público ao seu Presidente e Deputado, André Ventura. O líder carismático, que exponencia a sua imagem fictícia em torno de uma narrativa que conta como se entranhou no ‘Sistema’ sem nunca ter pertencido ao mesmo, que diz o que todos pensam sem qualquer filtro ente o cérebro e a boca, que possui uma inteligência acima da média e uma resiliência incomparável que invoca visões de David e Golias.

Enfim, um Populista com ‘P Grande’.

Sendo eu alguém que estudou em considerável profundidade o conceito de Populismo, tenho consciência que a falta de consenso em torno da sua definição deixa uma porta aberta para deslegitimação de qualquer critica baseada no termo.

Noutras palavras:

É o André Ventura Populista?

Sim.

Mas tentarei enveredar por um caminho menos óbvio.

‘Ele Diz o que Pensamos’

Um dos maiores argumentos utilizados pela base de apoiantes do Chega! é o facto de o seu líder ‘não ter papas na língua’ ou de ‘não ter medo de ser politicamente incorreto’.

A meu ver, este é um dos maiores presentes envenenados que se pode dar a uma sociedade. Esta tática simplista esconde o facto de que quando Ventura diz ‘aquilo que todos nós pensamos’, o que o mesmo faz menos é apelar ao pensamento.

Entre o impulso emocional e a digestão racional de um problema, existe um universo de distância. Um universo facilmente ilustrado pela diferença entre uma birra de uma criança frustrada por algo que não compreende, e a calma ponderação de um adulto que recolhe informação e procura uma solução.

Na política, como na vida, o volume de decibéis não tem uma correlação direta à veracidade de factos, apenas ao impacto emocional que os mesmos têm na pessoa em questão.

Ao pegar em assuntos facilmente maleáveis de forma simplista e sensacional — Patriotismo, Pedofilia, Religião, Segurança Nacional, Migração (etc.) — o Deputado apela de forma estratégica impulso emocional acima de tudo.

O princípio desta tática de comunicação política é fácil de compreender: Quanto mais intensamente sentimos, menos espaço sobra para pensar.

Uma Questão de Inteligência?

Não é raro ouvir, por parte dos que se opõem a este tipo de táticas de comunicação política, que os recetores de tais mensagens são de alguma forma menos instruídos. Por norma, este argumento segue a lógica de que quem acredita e segue tais movimentos não tem capacidades intelectuais para resistir a ser enganado por um proverbial ‘vendedor de banha da cobra’.

A meu ver, esse argumento é demasiado simplista, subestimando tanto o líder do partido, como o os seus seguidores e militantes.

Primeiro, o raciocínio em questão implica (direta ou indiretamente) a existência de pontos político-ideológicos facilmente identificados como ‘Certos’/‘Errados’ ou ‘Bons’/’Maus’. Sendo os partidos políticos a consolidação de um conjunto de ideias partilhadas por um grupo de pessoas que acreditam (em graus variados) estar a fazer o melhor para a sociedade que os rodeia, é impossível moralmente classificar os mesmos linearmente.

Num mundo perfeito, as ideias são interpretações de factos extraídos de uma realidade palpável; Num mundo menos perfeito, essas mesmas interpretações são feitas com base em factos mais ou menos imaginativos. Na ótica do líder (e sua respetiva equipa) que planeja e propaga informação ‘num mundo menos perfeito’, tal prática é indiscutivelmente condenável. Porém, na perspetiva do seguidor ou militante que consome apenas a mensagem final, essa condenação torna-se menos óbvia.

Noutras palavras, um líder que propaga uma mensagem de alarmismo através da manipulação criativa de factos é uma pessoa moralmente questionável. O mesmo não se pode dizer com tanta certeza em relação aos seguidores que consomem essa mensagem instintivamente, e a seguem com base na crença de estar a salvar o seu país e respetivos cidadãos.

De uma forma super-simplificada: É a diferença entre um charlatão e a vítima de burla.

O segundo ponto, diretamente relacionado com o conceito acima exposto, é o efeito que o impulso emocional tem na capacidade de pensar criticamente. No contexto do Chega!, todos os assuntos são, por norma, de uma urgência apocalítica — Existe um sentido de que os problemas levantados pelo Partido são de extrema prioridade para a Segurança/Moralidade/Economia (etc.) do País.

Os problemas assinalados por Ventura no Parlamento são todos ‘para ontem’, sob pena de que Portugal como o conhecemos colapse e nos leve a todos com ele para o Inferno.

Esse sentido de urgência, conjugado com retóricas mais ou menos credíveis e criativas, tem um efeito paralisante nos públicos predispostos a captá-lo. Visto que o líder se apresenta como sendo a pessoa que está melhor posicionada para salvar o país, qualquer tempo utilizado em pesquisa ou pensamento crítico não é apenas desperdiçado, como chega a ser prejudicial. O líder já tem as respostas, os relatórios, as pesquisas, e todo o material necessário para legitimar a existência do problema. O mesmo tem também todas as soluções, basta apenas segui-las para salvar o mundo.

Essa componente de resposta emocional também se encontra presente nos que se opõem ao Partido. Funcionando de forma semelhante, com a diferença que o impacto imediato é a rejeição da mensagem; que eventualmente (nos mais proactivos) se traduz em pesquisa, aprofundamento de conhecimentos, e pensamento crítico de modo a poder justificar tal rejeição.

É de notar que os componentes referidos (maleabilidade de ideias e resposta emocional) são potenciados ou apaziguados em direta proporção com assuntos exteriores, como por exemplo a cultura geral dos recetores, o seu envolvimento político, ou o conhecimento especializado de causas especificas.

O ‘Sistema’

Essencial para o sucesso e apelo do Chega! é a existência de um inimigo fácil de identificar, difícil de definir, e impossível de derrotar. Entrando cena: ‘O Sistema’.

No mínimo, O Sistema é um conjunto de pessoas, instituições, práticas, tradições, rituais, hierarquias (etc), que resultam no conceito extraterritorial do que faz um país. Noutras palavras, as coisas que definem um Estado para além das linhas geográficas. No máximo, O Sistema é algo absolutamente conceptual, visto que ao englobar tantos parâmetros, incluindo todos nós, se torna em algo tão vasto e complexo que qualquer tentativa de o conceber de forma material é uma tarefa fútil.

O Sistema, simplesmente posto, é tudo e nada em simultâneo. É tudo porque é uma parte constituinte da nossa realidade socio-nacional, e é nada porque não podemos isolá-lo do todo.

É essa dificuldade de definir o conceito de forma concreta que o torna na melhor ferramenta que André Ventura tem ao seu dispor. Ora, se as duas primeiras partes da sua estratégia política são a inflação de assuntos ou fabricação de emergências e apresentação do próprio como a única solução, a terceira parte inevitavelmente avança para uma desculpabilização do falhanço de efetivamente resolver os problemas em questão.

O Sistema torna-se na melhor desculpa por três motivos: retira a responsabilidade pelo falhanço do deputado, enquanto simultaneamente o vitimiza na face de um inimigo desproporcionalmente maior e mais forte, consequentemente reforçando o sentimento de antagonismo dos que nele votaram para com o Estado.

O Chega! é, acima de tudo, um Partido de comunicação política que se alimenta a si próprio de retórica vazia que não tem qualquer necessidade de ser legitimada por resultados.

Mundos Sem Fundos

Dos vários exemplos capazes de ilustrar o argumento prévio, creio que o proposto projeto de lei para castrar quimicamente indivíduos culpados de abuso sexual de menores (pedofilia) feita pelo Chega! seja a mais efetiva.

É indiscutível que André Ventura tem um background académico sólido na área de Direito, tendo estudado profundamente o assunto tanto em Portugal como no estrangeiro. Adicionalmente, o Deputado está longe de ser um novato no campo da política, tendo um historial relevante dentro do Partido Social Democrata.

Estes dois fatores tornam-se relevantes pelo simples facto de que Ventura está longe de ser ingénuo no que toca a assuntos de matéria legal, mesmo num contexto político ou parlamentário.

Com isto em mente, tenho sérias dúvidas de que o Deputado do Chega! desconhecesse que na pratica a sua proposta de lei fosse inconstitucional, como decretado pelo Conselho Superior da Magistratura.

Noutras palavras, Ventura propôs um projeto de lei que deveria saber à partida não ser viável nem aplicável no contexto sócio-político Português.

E mesmo assim o fez.

Da perspectiva de quem pensa que Ventura quer apresentar resultados palpáveis na forma de mudanças legislativas que representam a vontade dos seus votantes, este episódio pode parecer uma derrota.

Mas, da perspectiva de quem apenas se preocupa com o crescimento da sua máquina partidária e consequente consolidação de poder, a proposta foi um sucesso.

Primeiro, o enorme apelo emocional gerado em torno do tema da punição de pedófilos projeta uma narrativa fictícia de que quem não apoia o Chega! é contra a defesa das vítimas de abuso sexual de menores.

Segundo, a simplicidade com o que o assunto é comunicado à sociedade geral, com várias lacunas técnicas, torna-se rápida e facilmente amplificada pelos meios de comunicação social e redes sociais.

Terceiro, quando a proposta é chumbada, O Sistema é invocado como o vilão que implicitamente defende pedófilos.

Quarto, o Deputado em questão realça a sua pequenez na face do Sistema, e que apesar de ter perdido esta batalha, continuará o seu martírio por parte do povo.

Quinto, os responsáveis pelo chumbo da proposta são sugados para um debate, em que tentam refutar com factos o que o Chega! apresentou com emoções.

Sexto, o líder do Chega! reforça que a derrota faz parte de um movimento maior por parte de um Sistema que precisa de ser desmascarado e desmantelado, e que só ele o pode fazer com a força de mais votos e apoiantes/militantes.

O resultado final é o de uma lei que não foi aprovada, mas que obrigou tanto as instituições, como os indivíduos de um país a olhar e interagir com Ventura. Um falhanço político-legislativo, mas uma vitória indiscutível de comunicação e expansão partidários.

Quando o Circo sai da Tenda

Até agora, para todos os efeitos, descrevi um partido que não apresenta resultados, que vive de mensagens vazias e que faz mais barulho que estrago. A nível prático não existem problemas aparentes, certo?

Errado.

A razão pela qual o Chega! é o único partido na AR com potencial para ser problemático é sua eficácia comunicativa fora do Parlamento.

Em termos legislativos, o impacto de André Ventura pode não ser sentido durante muitos anos; Mas o impacto que o mesmo poderá ter a nível da sociedade civil e do quotidiano extraparlamentar tem espaço para crescer.

O facto de que o Chega! disputou certas áreas ideológicas com o Partido Nacional Renovador nas últimas eleições já é preocupante, mas as revelações de que neonazis estabelecidos integram ou integraram o Partido de forma ativa eleva o argumento para um novo patamar. Se esses pontos não fossem suficientemente preocupantes, acontece também que noutra instância, um indivíduo se sentiu confortável o suficiente para fazer um sieg heil (saudação nazi) enquanto cantava o hino nacional Português na linha da frente de um palco que albergava Ventura.

O Chega! é a primeira manifestação concreta (dentro da AR) de excessos ideológicos que têm surgido na Europa e além: Aurora Dourada na Grécia, UKIP no Reino Unido, Donald Trump nos EUA, Reagrupamento Nacional (antiga Frente Nacional) na França, Partido da Liberdade da Austria, Viktor Orbán na Hungria, e a lista continua…

O fio-condutor que torna tais partidos e indivíduos perigosos, mesmo os que não possuem meios para efetivar mudanças legislativas, é o apelo à violência (direta ou indiretamente) que os mesmos representam. As mensagens urgentes, altamente emocionais, e com inimigos mais ou menos definidos, empurram muitos cidadãos para missões de salvamento de pátria fictícias e com consequências graves para todos os que não vagueiam os corredores de decisão política central.

Não podemos esquecer que as palavras de uns, traduzem-se na violência de outros. E os exemplos, históricos ou contemporâneos, são tantos que simplesmente me recuso a enumerá-los.

Na face de tantas lições que já deveríamos ter aprendido eu digo: Chega de Aventuras!

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Viriato Villas-Boas

Observing & Commenting.● MSc Comparative Politics ■ London School of Economics and Political Science《》 B.A. Journalism & Media ■ Birkbeck, University of London