Algarve Bíblico

Viriato Villas-Boas
9 min readJan 31, 2024

Pecados, Fome e Sol — Numa Região de Joelhos mas que já não Reza

Crises económicas, uma pandemia, incêndios, secas, pobreza… O Algarve está à distância de uma praga de gafanhotos para ser compilado algures entre o Velho e Novo Testamentos da Bíblia. O pecado pelo qual toda uma região paga, por sua vez, esconde-se por entre um cardápio de possíveis candidatos.

O Algarve é presentemente uma região com um PIB acima da média nacional — apesar de maior parte da riqueza gerada sair quase imediatamente do Algarve, e de Portugal –, sem transportes públicos, com um considerável atraso cientifico-tecnológico, privações sociais gravíssimas, e, claro, muito sol.

Uma região repleta de possibilidades, de problemas complexos e razões simples — biblicamente simples…

O culpado, como sempre e para sempre, encontra-se na dependência monosetorial do turismo, na sazonalidade do emprego (e desemprego), na servitude para com turistas, nos contratos a termo parcial e dos não-contratos, na falta de habitação para quem habita e o amplo alojamento para quem visita.

As razões de sempre.

Mas razões não são verdades universais, e as mesmas dependem de motivadores. Motivadores fortes o suficiente para abalroar vidas inteiras, obrigando-as ainda a limpar a areia dos pés de turistas com o que resta de suas almas — de joelhos, mas á beira-mar, com fome, mas com um bonito pôr-do-sol.

Em Terra de Cegos… O Algarve é um Paraíso

E quando passamos as portagens a Sul, quando deslizamos junto à placa que soletra ‘ALGARVE (abrandando ligeiramente para publicar nas redes sociais [#algarve]), entramos finalmente numa região subserviente, proverbial e literalmente (dependendo do tamanho da gorjeta).

Visto que o Algarve é bem mais que férias, e que prémios como o de “Melhor Destino de Praia” já estão bem publicitados, creio relevante celebrar alguns feitos menos comunicados da nossa região:

O Algarve está muito acima da média, brilhando com distinção nas áreas do Abandono Escolar Precoce, da Sobrecarga de Despesas de Habitação, da Privação Material e Social, da Sobrelotação de Casas…

Uma distinção premiada com o sofrimento de quase 11.000 crianças Algarvias em condição de Pobreza Extrema.

Adicionalmente — e não querendo transparecer qualquer falta de humildade no que toca à minha região -, é importante referir que o Algarve lidera o continente nas matérias de Taxa de Privação Material, Maior Risco de Pobreza, e Menor Ganho (total do salário e outras remunerações).

O Sol que nos Salva, ou a Água que nos Lava?

O que tem um resort como (por exemplo) Vale do Lobo, em comum com o conceito básico de tomar banho?

- No Algarve, ambos são um Luxo.

O mesmo sol que atrai — que nem mosquitos para uma lâmpada — as almas que a todos nos tocam, mas desconhecem, é o mesmo sol que nos relembra para não suar muito, pois não há água para tomar banho. O sol que marca a existência dos beneficentes turistas, marca também a ausência das nuvens: as mesmas nuvens que os enxotariam, mas que nos aliviariam a sede e regariam os campos.

Neste sentido, contemplam-se projetos de dessalinização, o aumento de afluência às barragens existentes, entre outras inteligentes respostas. Respostas realmente tão inteligentes, que, se tivessem sido implementadas há largas décadas atrás, quando foram concebidas (e o problema era um puzzle e não uma ameaça), hoje não seriam meras ideias, mas sim soluções passadas.

Entretanto, vemos implementados cortes na pressão de água, maiores controlos da utilização da mesma, assim como cortes de 25% e 15% para os setores da agricultura e urbanos, respetivamente.

E enquanto tentamos processar coletivamente o facto que as barragens não têm água suficiente para sustentar as necessidades do Algarve até ao fim de 2024 — que até ao fim do ano não teremos mais água nas nossas torneiras! –, temos de contemplar ainda mais uma questão quasi-existêncial:

Será que voltaremos a ter um clima adequado aos moldes de agricultura presentes e tradicionais?

Ou seja, mesmo que tenhamos água, considerando as evidentes alterações climatéricas, vamos conseguir continuar o mesmo processo de produção que tínhamos nas décadas passadas?

Ovos em Cestos Rotos

Se imaginarmos, economicamente, que o Algarve depositou todos os seus ovos no mesmo cesto, estaríamos quase certos. Mas, se quiséssemos ser mais específicos nesta analogia, parecer-se-ia mais com o seguinte:

O Algarve tinha várias galinhas e vários cestos.

Um dia, uma galinha chamada Turística começou a pôr uma maior quantidade de ovos, e em menos tempo, que as restantes galinhas. Ao observar tal situação, o Algarve fez a única coisa lógica, e continuou a cuidar de todas as galinhas, e todos os cestos, com especial atenção á galinha Turistica.

Só que não.

No mundo real o Algarve decidiu deixar todas as galinhas morrer á fome, menos a galinha Turística, jogando fora todos os cestos que não se adequassem aos seus ovos.

Fim.

Dos estereótipos mais permeáveis acerca do Algarve, é a acusação do pecado de Preguiça — uma acusação facilmente proferida por entre bafos de cafés pingados em chávenas frias, numa praia algures Na Quarteira. Estereótipos oriundos do imaginário de quem apenas pensa no Algarve três meses por ano, confundindo o mundo real e material com as suas estéreis imaginações.

Mas, porque modelos de desenvolvimento económico (e as estruturas politico-burocráticas que permitiram as suas implementações) estão longe de representar toda uma população, talvez estejamos a falar do pecado certo, mas não do pecador.

Historicamente, o Algarve progrediu relativamente rápido de uma realidade centrada em burguesias agrárias, na produção agrícola, pastorícia, carvoaria, e claro, a pesca — Seguindo a evolução politica do país na aplicação de politicas de liberalização de mercado, através das quais o Algarve reajustou o seu foco para o mercado imobiliário, construção, capitalismo agrário e, claro, turismo.

Ou seja, a região transitou da exploração e desenvolvimento de recursos imediatamente presentes, para uma economia dependente da importação de pessoas, e as suas respetivas carteiras. Pois o que é ‘Turismo’ numa região culturalmente estéril, e socialmente decadente, senão apenas sol e areia?

Consequentemente — pois o sol e a areia em si são difíceis de empacotar e vender á unidade –, criou-se a necessidade de importar recursos necessários para aceder às carteiras das pessoas que também importámos.

Estou longe de defender uma reversão a uma economia baseada principalmente em atividades agrárias — o Passado deve ser sempre um ponto de partida, e nunca uma meta na qual nos voltamos a encontrar. Sim, o Algarve é rico em vários recursos naturais, e certamente toda uma possibilidade competitiva ficou no passado durante a troca da aragem dos campos por hotéis á beira-mar. Apesar de ser óbvio que o desenvolvimento de um setor não implica a estagnação de outro, apenas o contrário se pode observar.

Uma das lições menos violentas, mas mais desgastantes, que se aprende vivendo e observando, é que o ‘lógico’ é ignorado (e até atacado) ao ponto de exaustão. É desgastante testemunhar, repetitivamente e quase ao ponto de insanidade coletiva, uma tamanha guerra a tudo o que é lógico, a tudo o que é racional. Conflitos motivados, por vezes, por maldade, e noutras instâncias por mera limitação cognitiva, mas originando de pessoas ou instituições que deveriam — que têm a obrigação! — de saber melhor.

Admito o tom idealista em que escrevo, e claro, compreendo que as razões que movem tamanha negligência se centram num híbrido de preguiça e ganância. Mas todos precisamos de pontos de referência, de metas idealizadas, de modo a saber que caminho critico percorrer de volta do buraco. Assim como as doenças têm nomes, para ultimamente nos podermos livrar delas.

Prisões e Castelos de Areia — Preguiça e Ganância

Seria legitimo, mas ultimamente fútil, esmifrar números e estatísticas, quando a realidade é tão absolutamente sufocante, que basta confiar nos nossos sentidos para ver a dependência — degradante para o orgulho de uma região (como todas as dependências são, para indivíduos ou comunidades) — que o Algarve tem do setor do turismo.

Um sufoco presente nos cheiros de locais desproporcionalmente ocupados por quem não os ama… o cheiro a protetor solar barrado às colheres, o vómito no canto das várias Ruas da Oura espalhadas pelo Algarve, e o sangue que segue atrás por essas mesmas pedras de calçada. Cegados por neons, por publicidades, que ofuscam tanto o brilho natural de quem aqui vive (de quem aqui serve), como afugentam as próprias estrelas no céu — que, assim como os sonhos de muitos Algarvios, decidem brilhar noutro sítio, e noutras vidas. Fisicamente acorrentados a receções de hotéis, com bandejas coladas às mãos, ou em escritórios dedicados á promoção (venda) nas redes sociais das prisões de sol e praia com pequeno-almoço incluído.

A já identificada preguiça historicamente sinalizou que com menos trabalho se conseguiriam exponenciar ganhos económicos… Que investir num hotel, e fazer desse mesmo hotel um forte autocontido para albergar, alimentar, entreter, e extorquir turistas seria mais fortemente recompensado. A mesma preguiça que cegou empresários e políticos para a inserção de investimentos num contexto que engrandeça a situação social e económica da região, e que — apesar do trabalho adicional -, também asseguraria a perpetuidade dos negócios e investimentos.

Uma preguiça mental, que bloqueou uma observação óbvia: é mais difícil importar turistas para uma realidade definida por secas, pobreza extrema, e miséria humana e animal quase incalculáveis.

Esta preguiça define também a falta de visão necessária para uma séria cooperação intermunicipal. A mentalidade de que os investimentos turísticos têm de ser circuitos fechados, infetou também as autarquias do Sul; que — com resultados e intenções mistas –canalizam também os seus esforços para minimizar o sangramento de dinheiro além dos limites das suas jurisdições. Algo extremamente óbvio nos diferentes níveis de desenvolvimento e manutenção, de (em muitos casos) municípios vizinhos.

Mesmo considerando a complexidade política e orçamental, que varia extremamente de localidade para localidade, é importante frisar que não me refiro a obras megalómanas…

O que questiono é a legitimidade da existência, por exemplo, de estradas com buracos, ou passadeiras por pintar, quando todas essas estradas nos levam — mais tarde ou mais cedo — a empreendimentos multimilionários; onde, por norma, as únicas pessoas a utilizar esse pavimento negligenciado, são aquelas a caminho de picar o ponto.

E se a preguiça fosse um modelo de super-iate atracado na marina de Vilamoura, teria como nome Ganância, escrito em letras estilizadas e encrostadas em diamantes. Porque no Algarve um ciclo se torna aparente (no contexto deste artigo): é fácil fazer muito (dinheiro) com pouco (trabalho), se simplesmente nos tornarmos cegos para as repercussões.

Um macro-padrão torna-se cada vez mais evidente: um paroquialismo económico, e por níveis, que prioriza a criação de pequenas áreas mono-temáticas de investimento, desenhadas para conter turistas e lucros.

Uma espécie de matrioska, em que o investimento é contido no centro, e inúmeros obstáculos são postos á sua abertura: Resort com tudo incluído –> Atrações Municipais –> Atrações Regionais –> Atrações Nacionais.

Para se afirmar como potência regional, à semelhança do que acontece no resto do país, o Algarve precisa de encontrar uma coerência mínima, cooperação e empatia.

Alternativamente, continuaremos a sofrer e a propagar sofrimento — bastante reais -, em troca da promessa de uma fantasia demente de sol, areia, e subserviência na forma de gorjetas.

Referências:

Godinho, João Mira; Mairos, Olímpia (2023), “Algarve no topo da pobreza mas cheio para a passagem de ano” — https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2023/12/28/algarve-no-topo-da-pobreza-mas-cheio-para-a-passagem-de-ano/360615/

Jesus, Maria Margarida Nascimento (1993), “Metodologia input-output aplicada à economia algarvia” — https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/27840

Lusa (2023), “Índices de pobreza no Algarve estão ligados à dependência de um “monosector” económico” — https://www.publico.pt/2023/12/12/sociedade/noticia/indices-pobreza-algarve-estao-ligados-dependencia-monosector-economico-2073314

Mendes, Ana Beatriz Pereira (2019), “ A Economia Circular no desenvolvimento da região do algarve: uma proposta de indicadores” — https://repositorio.ul.pt/handle/10451/40650

Mesquita, José Carlos Vilhena (2009), “A Economia agrária do Algarve, na transição do Antigo Regime para o Liberalismo (1750–1836)” — https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/4435

MUROS (2023), “Algarve: uma «região rica» com a taxa de pobreza acima da média nacional” — https://muros.online/algarve-uma-regiao-rica-com-a-taxa-de-pobreza-acima-da-media-nacional/

Observador (2024), “Algarve: Seca, barragens atrasadas, obra por fazer” — https://observador.pt/2024/01/18/algarve-seca-barragens-atrasadas-obra-por-fazer-ligue-910024185-e-entre-em-direto-no-contra-corrente/

Portugal.Gov (2024) “Novas medidas para enfrentar a seca no Algarve e Alentejo” — https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=novas-medidas-para-enfrentar-a-seca-no-algarve-e-alentejo

Ribeiro, Conceição (2024), “Seca no Algarve: agricultura terá de reduzir 25% em consumos” — https://sicnoticias.pt/pais/2024-01-17-Seca-no-Algarve-agricultura-tera-de-reduzir-25-em-consumos-b13236b7

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Viriato Villas-Boas

Observing & Commenting.● MSc Comparative Politics ■ London School of Economics and Political Science《》 B.A. Journalism & Media ■ Birkbeck, University of London